O questionamento que move essa performance é: como nós artistas podemos atuar para um público, sem a liberdade de expressar ou ocultar, voluntariamente, pelo desejo ou metodologia, o que nos vai ao coração e ao íntimo? Pelo exame de um panorama histórico do Fado, constrói-se uma performance baseada em artefactos, posturas e indumentária, que discute a representação do género e a liberdade de comunicar-se simbolicamente com o público pela expressão de género. A partir da indumentária convencional do Fadista tradicional – induzida durante a invenção do Fado como um dos três “F” do Estado Novo –, três eventos onde ela é culturalmente questionada contribuem para a nossa discussão das escolhas do artista frente a esta tradição.
São eles: (1) o Fado Bicha, que desenvolve contundente discussão sobre sexualidades na cena fadista. Entrevistada, Lila Fadista descreve como nasce o desejo de manifestar-se politicamente no embate com forças contrárias que experimentou durante sua formação fadista. Alega ter seu desejo cerceado ao escolher o repertório que comunica sua expressão. O “fado mulher”, de eu lírico feminino, ela, ainda lida como “ele”, não tem a permissão de cantar. (2) Uma discussão que presenciei numa Tasca na Graça, onde um fadista canta um tema de objeto do desejo com género indefinido, possivelmente masculino, e é energicamente chamado a atenção pelo seu proprietário. (3) A carta publicada por um fadista, que questiona sua trajetória na cena e as interdições sofridas, auto e externamente impostas pela (sua perceção da) tradição do fado. A proposta desenvolve-se a partir desta carta lida em off, e por sobre a qual o performer apresenta-se com movimentos de resgate ancestral da dança do fado intercalados por insertos musicais e poéticos, enquanto se desnuda, transformando a indumentária inicialmente masculina em algo étnico e andrógino.
O território tradicional do fado em Portugal é marcado por estruturações que ocorrem no desenvolvimento da cena política e social, na transição entre o oitocentos para o novecentos, marcada pela perseguição aos divergentes dos padrões conservadores – muitos deles identificados com as marginalidades sociais, sexuais e étnicas, ora movidos pelos ideais socialistas, anarquistas e/ou republicanos, ou tangenciais à modernidade nas artes.
Após a queda da ditadura, Portugal passa por transformações, também vividas noutras latitudes, ligadas às afirmações das diversidades sexuais. Apesar do Fado, ter uma origem radicada na marginalidade urbana, social e de costumes, ser deprecidado por sua origem afro-brasileira dançada, por estar simbolicamente ligado a marinheiros, tascas e zonas de prostituição de Lisboa, e ao populacho, a sua persistência e difusão no imaginário cultural português parece tê-lo feito resistir às tentativas de sua estigmatização pelo Estado Novo, passando a figurar de modo “domesticado” pelo regime de Salazar. Reinventou-se uma tradição estética para o género musical popular e junto a ela uma moralidade conservadora – herança aristocrática decadente do oitocentos –, que impregnou o Fado, trazendo certa solenidade e uma outra dignidade, envolta em negra indumentária, xaile e silêncio.
Em fins do novecentos, já se percebem algumas transformações importantes na cena musical, como posturas divergentes do padrão heteronormativo masculino – António Variações em seu estilo pop, atravessado pelo fado amaliano, o andrógino Paulo Bragança; e o resgate, no início do século XXI, do conceito de “fado dos subúrbios” e também do termo vadiagem para a música, que desenvolve o OqueStrada. Dentro dessa perspetiva de transgressões do fado, seja para atualizá-lo, contrapô-lo ou reapresentá-lo, identifica-se um novo cenário onde é possível manter a invenção tradicional, algumas dissidências e outras propostas.
Espera-se observar os efeitos da performance para uma reflexão mais profunda acerca do tema e outros desenvolvimentos.
O que interessa é sentir o fado; ou de quem eu gosto nem às paredes confesso
Por
Laffayete Alvares Jr e Nascimento Rosa
Palavras-chave
Liberdade Artística; Representações de Género; Cultura e Poder; Relações com o Público; Fado