A mulher que queria sexo recreativo. A ordem de género está ou não a mudar?

Quando recebi o convite para fazer uma palestra neste evento, foi o próprio título que me interpelou: “Sexualidade e Lazer”. Demorei algum tempo a perceber por que me tinha sentido interpelado. A minha primeira reação – instintiva – tinha acontecido sob a forma duma pergunta: “Mas a sexualidade não é sempre lazer?” Para, logo de seguido, me corrigir: “Não é isso. Sexo talvez seja sempre lazer, mas sexualidade não é sexo”. Percebi então que tinha sido a palavra “lazer” a interpelar-me, pois ela convocava imediatamente o seu antónimo – “trabalho”. Afinal, o que me intrigara tinha sido o facto de “sexualidade e lazer” imediatamente invocar “sexualidade e trabalho”. Permitam-me, então, que comece por falar sobre o binómio “sexualidade e trabalho” (ou “labor”, para emparelhar mais musicalmente com “lazer”). Há, efetivamente, do ponto de vista antropológico, um trabalho ou labor da sexualidade ou para a sexualidade. Por sexualidade entenda-se a formatação – epistemológica, social e cultural, política – dos corpos sexuados, do desejo, das relações sexuais e afetivas, da reprodução biológica e social.

Por trabalho ou labor, entenda-se o esforço pedagógico, regulatório, legal, que em di- ferentes contextos históricos e culturais, assegura aquela formatação.

Esse trabalho formatador cria e assenta em pelo menos duas grandes instituições que têm sido alvo de debate, contestação e transformação na modernidade e, sobremaneira, nas décadas recentes (de que é exemplo o próprio facto de estarmos aqui neste evento). São elas o género e o que em antropologia designamos por “parentesco”. Nesta palestra abordarei sumariamente – pois a audiência será certamente conhecedora da área – em que consiste a noção de género nas ciências sociais e em que consiste a noção de parentesco. Ambas serão articuladas justamente através da noção – moderníssima e recentíssima – de sexualidade. As articulações entre construção de masculinidade e feminilidade, por um lado, hetero e homossexualidade, por outro, e entre ambas e arranjos de parentesco heteronormativos e patriarcais, são fundamentais para entender o trabalho de sexualidade que nos conduziu aqui, a este debate e discussão neste evento.

Por oposição a este trabalho – mas apenas aparentemente em oposição – uma das linhas de fuga em relação às ordens de género, de parentesco e de sexualidade em que temos vivido, tem sido a suposta libertação do sexo em relação ao género, ao parentesco e à sexualidade. Nomeadamente através de noções de liberdade, autonomia e prazer, todas apontando no sentido do lazer.

Tem sido através de discursos e práticas em torno do sexo que o trabalho da sexualidade tem sido desafiado. E tem sido na autonomia sexual feminina, bem como na autonomia sexual gay e lésbica, que as maiores ruturas aconteceram, questionando a reserva exclusiva do lazer e do sexo autónomo para os homens heterossexuais. “A mulher que queria sexo recreativo” – seja ela heterossexual, bissexual ou lésbica – é apenas uma evocação, no título, da “personagem” que considero conter o maior potencial disruptivo na ordem de género e no “trabalho da sexualidade”, enquanto a emergência à luz do dia da homossexualidade masculina desafia os efeitos do trabalho de sexualidade sobre os homens e questiona a ordem do parentesco.

Como qualquer antropólogo que se preze, não consigo pensar sem vinhetas etnográficas, e proponho-me sistematizar as recorrências – sistémicas, diria – nas narrativas de mulheres que conheço e que reivindicam o sexo como lazer. Focarei sobretudo mulheres heterossexuais. As demasiado recorrentes reações dos homens com que se envolvem, quer ocasionalmente, quer relacionalmente, revelam a estrutura do trabalho de sexualidade, enquanto construtor de ordem de género e de parentesco, através de reações só aparentemente “banais”, como o ciúme, a posse, a estigmatização, a auto-comiseração, ou verdadeiramente graves, como a perseguição ou a violência verbal, psicológica ou física.

Por fim, um último elemento de food for thought. Até que ponto o trabalho de sexualidade em que temos vivido, focado na regulação do género e do parentesco, não está a ser substituído por um trabalho do sexo, como atividade cada vez mais regulada enquanto prazer – uma espécie de lazer compulsivo, obrigatório e ordenado, sem o qual a Pessoa é vista como falhada?

Cada um destes parágrafos será desenvolvido oralmente, assumindo o meu entendi- mento de keynote como um “pensar alto para fazer pensar” e não como paper baseado em investigação.